quinta-feira, 19 de março de 2009




E pequenos pedaços coloridos de papel caíam do céu. Dançando entre a luz e a contraluz a faziam abrir e fechar os olhos rapidamente, se assustando com o brilho do sol mas nunca desistindo da incessante busca por todo aquele colorido.

São Pedro está conosco! Pensou, as vezes manda chuva, as vezes os confetes!

Seu rosto dourado pelo sol de toda aquela manhã brilhava também como ouro do plástico da coroa que vestia. Além de tanta purpurina, não desistia nunca de mante-lo inclinado aos céus em busca dos confetes voadores.

A musica, antes tão rápida e animada, ao meio dia parecia ralentar. Toda a cerveja das latinhas que passaram por suas luvas brancas, uma atrás da outra durante toda a manhã, a tornaram lenta. E muito sorridente. Sempre.

Os anjos, os diabos, reis e rainhas, as odaliscas, melindrosas, os malandros e heróis, todos eles, quase em uníssono, pulavam, cantavam e sorriam. E alguns também, beijavam.

Enquanto isso, ela ainda olhava para o céu distraída. Avistava, bem pequeno, o pedacinho de papel que agora encontrara o beija-flor que parecia ter vindo participar também da festa. E como se esbaldou.

E dez anos se passaram.

Feliciana dormiu?

Lá estava ela. E o olho ainda brilhava. E no meio do bloco, vestida de rainha, olhava tudo atentamente.

Sob a luva preta ainda a latinha. Na mão esquerda, mais um saco de confete. E a multidão, ainda em uníssono, desaguava no largo antigo onde a folia, mais horas menos horas, teria certamente seu fim.

Ainda beijavam, pulavam e cantavam. Alguns também sorriam.

E são Pedro mandou chuva.

Feliciana ainda inclinava o rosto para cima sorrindo e dessa vez brilhava molhada e borrava de preto.

Tirou a peruca vermelho-cereja, tirou dois reais do bolso molhado, comprou na esquina sua última latinha e caminhou devagar sob a chuva.

Era quarta-feira de cinzas e Feliciana pensava: acabou meu carnaval.

domingo, 8 de março de 2009

Chá da meia noite




As palavras lhe haviam desaparecido fazia algum tempo. Coisa assim de umas semanas, o tempo exato em que obrigara-se a encher só de imagens e conseguir sentir, em todo os poros, o tema daquele seu próximo filme.

Lá pelo chá da meia noite, aquele que acaba tendo que ser café tamanho é o volume de trabalho, pensou na torradinha. E fez com manteiga.

Tudo quente e o verão lá fora mais ainda. Decidiu ligar o ar e achou mesmo que a idéia ia ventilar.

Nada nada. As palavras a dominavam tanto tanto nos últimos tempos, que tendo que conseguir pensar imagens, fugiu como um corredor em dia de maratona delas e agora, as palavras haviam mesmo desaparecido. Cada letra, cada som, nada mais parecia lhe fazer sentido.

Estava cansada das imagens. E passava seus meses assim, cansava aqui corria pra lá, cansava lá corria de volta e nada nunca parecia se completar. E só assim conseguia adormecer, mesmo que já de dia, e só assim seguia, mesmo que sonâmbula, no próxima dia.

Sabia sempre que no dia seguinte faria algo novo: teria ódio das imagens bobas que criava para se distrair, ou pior ainda, para distrair, nem que por um segundo inútil, cabeças alheias, cabeças flutuantes e desejadas como aquelas que ela bem conhecia...

E então, no outro dia, além de acordar lembrando que um dia morreria e ter vontade de chorar lembrando mais ainda do que perdera, tb arranjava algum minuto, entre o banho e o computador, para pensar que hoje poderia escrever alguma coisa e aí, o sofrimento era só amanhã.

E foi isso que mudou tudo. Ultimamente resolveu esquecer palavras e tentar ver, rever e imaginar imagens... precisava fazer o seu filme. E fez. Mas continuou acordando lembrando da morte, dormindo chorando por ele e agora não podia mais sentar diante da tela branca (ou azul) e escrever.

Navegou sozinha, nesse dia, por muitas ruas, coitadinha. E Feliciana resolveu parar de dormir. Expressionou-se. E sentadinha ao lado do seu chá da meia noite, um café bem amargo lhe desce garganta abaixo e ela ainda chora.